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O dia em que meu dedo beijou uma pedra
André - 20 dezembro 2012 - 23:55

Temos uma pedra na cozinha aqui de casa, utilizada como peso para segurar a porta da cozinha. É uma pedra cinza, áspera, relativamente grande - nada gigantesco, no máximo 15cm de altura ou largura, apenas maior do que a maioria das pedras que se vê em ambiente urbano. Talvez atinja uns 8 ou 9 na escala da danos causados caso seja atirada com fúria em alguém. É uma pedra com uma curva extremamente típica das pedras, com um formato semelhante a 1/4 de uma bola, um daqueles formatos que necessitavam de oito equações e uma página de cálculos para serem desvendados nas aulas de geometria. Ela é tão arquétipa que parece ser artificial, embora não o seja - sua única artificialidade consiste no corte reto e cristalizado que interrompe seus traçados originais para, bem, para oferecer uma estrutura reta que seja harmoniosa com essa outra estrutura reta chamada "porta de cozinha".

Enfim, a pedra estava lá, recostada na porta, fazendo o que quer que seja que as coisas inanimadas fazem, quando eu me aproximei da região. Minha inaptidão para cálculos e física e minha graça ao me mover, semelhante à de um touro em anfetaminas, poderiam ter me alertado do perigo, mas a rotina nublou minhas paranoias ao despejar no cérebro aquela sensação aérea, aquela sensação meio absurda de perceber a existência de algo e ao mesmo tempo ignorá-lo (os homens a reconhecem do campo de futebol, quando, mesmo alvos de inúmeras liberações do ID nas canelas, só percebemos os machucados ao final da partida; as mulheres a reconhecem de todas as vezes que precisaram falar "gosto de você como amigo"). De qualquer jeito, a verdade é que Carlos Drummond de Andrade estava certo e sim, havia uma porra de uma pedra no meio do caminho.

Ao mínimo sinal de contato entre a pele humana e aquele traiçoeiro amontoado de minerais, meu sistema nervoso, aparentemente com energético saindo pelas mitocôndrias, fez questão de chegar o mais rápido possível ao cérebro e entregar um bilhetinho pequeno, amarelado, que, ao ser aberto, continha apenas a seguinte inscrição: "fudeu". A dor lancinante (eu sempre quis escrever "dor lancinante") se espalhou pelo corpo como um viral de internet, manifestando sua eloquência para ter certeza de que cem por cento da atenção iria para ela (e, nesse caso, poderíamos considerar a dor nada mais do que a versão sensorial de uma criança hiperativa de 3 anos,  só que um pouco menos incômoda). Foi direto ao ponto, sem rodeios, sem papas na língua. Acho que a melhor forma de descrevê-la é dizer que era uma dor de personalidade forte.

Um milésimo de segundo após eu finalmente perceber que alguma parte do corpo não correspondia à tradicional expectativa de "estar inteira", veio o sangue. E por Deus, como um dedo sangra. É algo desconcertante. Mesmo um corte mínimo já faz as vezes de bomba de água descontrolada - e, toda vez que acontece e esse córrego globulíneo é expelido, não consigo deixar de pensar "mas ei, então do que o cérebro está se alimentando?". É como se os dedos tivessem conhecimento de sua situação não-vital (do tipo "ah, fica tranquilo, foi só o dedo", ao contrário de um impensável "foi só uma lascada no pulmão, acho que podemos continuar jogando") e tentassem compensar essa posição baldeando sangue para fora, buscando, talvez, um eventual desmaio da pessoa e a conquista de uma posição na segunda linha hierárquica das emergências médicas, junto com os tendões. De certo modo, chega a ser comovente.

Gostaria de dizer que encarei a situação normalmente, mas a verdade é que, ao avistar aquele vermelho photoshópico sendo libertado, já comecei a imaginar como seguiria a vida com um dedo a menos. Haveria de inventar uma história nova, claro, uma corajosa, envolvendo piratas e caubóis e vilões e bandidos e perigos iminentes e o Batman. Seria obrigado também a me adaptar a não ter mais o leque de movimentos característicos do dedo mindinho, que são em um número próximo de zero, acredito. Tudo isso passava pela minha cabeça enquanto eu aglomerava palavrões com uma oratória cristalina e impactante que jamais tive, metade deles desferidos ao cachorro da minha irmã, que não teve nada a ver com a situação mas estava por perto, e, como ele com frequência faz por merecer tais xingamentos, considero justo que eu tenha sugerido que a mãe dele se utiliza de meios um tanto carnais para ganhar a vida.

Isso foi há duas semanas. Pude analisar o processo de cicatrização durante desse tempo, e, após longas observações e reflexões, concluí que ele é feio pra cacete. Uma casquinha avermelhada se forma ali por cima, com uma texura áspera, semelhante à de uma pedra (olha a ironia), e depois ela enche o saco de ficar vermelha e fica mais escura,  e daí vai tomando cores cada vez mais sem graça até ser acidentalmente decapitada durante um movimento qualquer. Só que daí a pele por baixo já se refez magicamente e a perda da casquinha se torna um ato de libertação - o dedo volta a existir novamente enquanto dedo, e não mais enquanto aquele pedaço do corpo enrolado em band-aid e que necessita de cuidados especiais para não fazer nova festa com open bar de sangue, cuidados esses prontamente ignorados assim que o band-aid é colocado e que certamente são coisa de mulherzinha.

De qualquer jeito, a pedra continua ali e eu já voltei ao estado onde a ignoro completamente, passando por ali sem dar nenhuma atenção à ela. Porque o corpo meio que aprende o caminho automaticamente, não obrigando a pessoa a se desviar propositalmente da pedra, apenas seguir um trajeto que já sabe ser desprovido de maquinações malévolas dos objetos. Na verdade, esse trajeto esse trajeto foi internalizado pelo meu sistema há muito tempo, tornando o evento aqui relatado uma exceção - tanto é que o contato se deu apenas de raspão, sem aquele choque frontal que afeta o local atingido e o estômago, não importando a distância entre um e outro. Milímetros para o lado e eu teria passado incólume. Foi por um dedo.
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