Sábado de manhã estava eu lá na José Bonifácio, me perguntando o que eu fazia já acordado em um sábado de manhã e observando casualmente a ode ao contato humano que é aquele brique da redenção. Eu estava na calçada do lado contrário à redenção, onde ficam umas igrejas e a confeitaria Maomé, parado perto de um cafezinho que tenta emular o arquétipo dos cafés franceses. O movimento no brique é sempre intenso, e eu com frequência tenho a impressão de que as pessoas que por ali circulam têm meio que um sorriso orgulhoso no rosto, uma espécie de satisfação adicional por fazer parte de uma tradição da cidade, como se comprar cuias artesanais e acessórios rústicos bonitos ajudasse a justificar um eventual bairrismo.
De repente vem caminhando na minha direção uma mulher. O rosto dela era bastante triangular, e um pouco marcado também. Talvez uns quarenta e cinco anos. Tinha uma expressão bastante dura, mas não o tipo de expressão que é uma reação a um evento específico, e sim o tipo que é construído ao longo de muitos anos de jornadas de 10 horas de trabalho por dia, de filhos acidentais, de ter sempre que colocar suas ambições de lado para conseguir fazer a vida funcionar. O cabelo era de um loiro mais desgastado e vinha preso, com alguns fios revolucionários desafiando o status quo. Vestia um sobretudo vermelho bem vivo, que era realçado ainda mais pela lã grossa e pelos contraste com os botões pretos, abotoados até em cima em um exagero desnecessário para a temperatura. A passada era tranquila, mas a postura, com os braços puxando as lapelas do sobretudo em direções opostas, como se tentando fechá-lo ainda mais, denotava uma postura defensiva diante do mundo.
Ela veio em linha reta, objetiva, sem desperdiçar nenhum movimento com floreios ou chistes desnecessários. Talvez, por isso, seu único gesto destoante tenha chamado a minha atenção: sem interromper ou sequer diminuir a caminhada, ela virou um pouco o rosto na direção do brique, onde trabalhadores acostumados a madrugar e à estrada organizavam as peças artesanais tão bem construídas, e fez um discreto aceno de mão chamando alguém. Imediatamente um rapaz jovem percebeu a dança. De altura mediana, queixo quadrado, cabelo moreno e curto e roupas ligeiramente surradas, ele rapidamente terminou de carregar o caminhão velho ao lado e atravessou a rua sem alarde, como se aquele fosse o seu caminho natural. Ao se aproximarem, eles não se cumprimentaram. Sequer esboçaram uma reação de que se conheciam. Apenas caminharam juntos, durante meia quadra, e pararam naquele que é o ninho de todos os românticos do mundo: atrás da banquinha de cachorro quente.
Eles estavam na mesma calçada que eu, ou seja, atrás da banquinha fechada ficavam escondidos de todos os olhos do brique. E estavam bem ao meu lado, ela, alta, com uma falsa postura nobre, rosto castigado pelo tempo e pelos anos, ele mais baixo, mas também com aquele ar de cansaço que apenas uma vida difícil consegue conferir. A poucos metros dali, aguardando na frente de uma porta gradeada, Mark Lanegan rasgava letras sombrias no meu ouvido. Iniciaram uma conversa destinada a ser longa. Provavelmente envolvendo discussões a respeito de encontros secretos, famílias desunidas, status sociais, a desaprovação da sociedade, decepções, ilusões e corações sagrados.
Mas eu fiquei ali, ouvindo música e ignorando a conversa deles, sem ouvir uma palavra do que diziam. Qualquer um que possua a coragem de expor seu coração atrás de uma banquinha de cachorro quente tem a minha sensibilidade.
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