entendo toda essa preocupação e terrorismo que a imprensa anda fazendo com a gripe a, mas acredito que essa abordagem acabou desviando o foco de outra epidemia: a epidemia de carros. em qualquer lugar de qualquer cidade que o cara vá, encontra sempre uma manada dessas caixas de metal com design atraente, pilotadas pelo que deve ser a mais pura liberação do id em forma corpórea. são uma tradução motorizada para uma enorme gama de sentimentos humanos, como pressa e baixa auto-estima e frustração e irritação, entre outras das vicissitudes mais básicas da humanidade. uma vez dentro dentro do veículo, o ser humano é terraplanado por alguma força mágica que o deixa incapaz de distinguir entre verde e vermelho, impaciente, relativiza o tempo de tal forma que qualquer coisa abaixo de sessenta por hora é devagar, perde completamente a noção de "mundo exterior". a hora do rush é praticamente uma seita cuja missão na terra é ocupar todos os espaços disponíveis nas ruas, e, por que não?, nas calçadas. a selvageria rosnada em carcaças de 30 mil reais, com entrada e todas as vezes sem juros. do alto dos seus bancos de pele de animal sintética, as pessoas acreditam que estão deixando os mendigos e os marginais e o trabalho e as mulheres lindas que os rejeitam e as perguntas complicadas e os problemas de saúde e o mundo para trás, presos nas sinaleiras que fecham no último minuto, despistados pela fumaça do canos de escapamento. mas para dar um passo à frente você precisa dar um passo à frente, amigo, não acelerar um passo à frente. parado na esquina de um cruzamento movimentado, com medo de atravessar por duvidar fortemente da aceitação das regras por parte dos motoristas, eu sou um dos que vê você passar o sinal vermelho e penso, assustado, "para encurtar as distâncias do mundo é preciso encurtar também a minha visão sobre ele?".
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