Cisne Negro (Black Swan) 5/5
Direção: Darren Aronofsky Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz e John Mclaughlin
Elenco Natalie Portman (Nina Sayers) Mila Kunis (Lily) Vincent Cassel (Thomas Leroy) Barbara Hershey (Erica Sayers) Winona Rider (Beth Macintyre)
Nina é uma bailarina tímida e reprimida que pensa, vive e respira sua arte (exatamente o que os homens fazem com relação ao sexo, só que com balé). Buscando um lugar de maior destaque na sua companhia, ela acaba alçando vôo (trocadilho obrigatório) até ser a estrela principal no espetáculo O Lago dos Cisnes, interpretando o Cisne Branco e o Cisne Negro. Mas, ao mergulhar no papel (trocadilho obrigatório), Nina começa a ceder à pressão de se soltar, de se libertar, de conseguir interpretar os dois lados - além de sentir inveja de uma bailarina novata, Lily, que consegue justamente ser solta e ASSANHADA como Nina gostaria de ser. E o medo de ser substituída por Lily só faz com que a moça entre ainda mais em parafuso.
O balé é uma arte bela, encantadora, cheia de movimentos graciosos e apresentações delicadas. Enfim, coisa de mulherzinha. Mas em Cisne Negro o diretor Darren Aronofsky nos leva além desse mundo aparentemente branco e singelo, atirando o espectador em uma viagem intensa e devastadora à mente de Nina, aos sacrifícios que ela precisa fazer, a tudo que ela precisa renegar, construindo uma obra tão visceral e cheia de simbolismos que o filme faz um violento jogo de rúgbi soar como uma partida de Paciência no computador. E faz isso de forma tão complexa que, ao final da projeção, é impossível não levantar da cadeira, correr pela sala do cinema fazendo aviãozinho e depois tatuar "Natalie Portman" no coração.
Na lagoa da minha cidade os cisnes não são assim.
Concebido com o mesmo cuidado e atenção que um adolescente concede ao seu videogame, o roteiro de Cisne Negro é uma sucessão interminável de vitórias. Já no início somos apresentados à dedicação de Nina ao ver que, assim que sai da cama, a pimpolha vai direto ensaiar e arrumar sua roupa de balé na frente do espelho. Aliás, os cuidados do filme ao mostrar algumas artimanhas e rotinas da área (como quando Nina arruma a sapatilha para dar mais estabilidade, ou quando ela faz uma massagem após o ensaio e vemos o preço que a dedicação cobra do corpo da moça) dão ainda mais verossimilhança à história e ajudam a tragar o espectador até aquele mundo. É aos poucos também que a personalidade de Nina vai sendo construída através da presença constante e castradora da mãe (em pessoa ou ligando pelo celular), da admiração excessiva por Thomas, do medo de perder o papel de Rainha Cisne e, principalmente, da tentativa de ser perfeita em cada movimento (tanto que várias personagens sugerem à protagonista ela que trabalhe menos e relaxe mais. Infelizmente ninguém citou O Iluminado com "só trabalho sem diversão fazem de Jack um bobalhão". Fracos). E é interessante notar como pequenos momentos e elementos (um olhar de Thomas pra Lily; os momentos de preocupação excessiva da mãe; a visão de Nina de que o papel de Rainha Cisne é mais imprtante do que o Santo Graal, ilustrada muito bem em uma determinada visita à Beth; entre outros) aos poucos vão ganhando mais dimensão, mais urgência. E tudo isso faz com que o público realmente sinta quando a coisa toda começa a rachar e Nina se entrega a um "eu" que ela jamais havia conhecido antes. Para manter o climão sombrio e angustiante, digno de uma visita ao banco, Aronofsky utiliza a fotografia com um grão mais grosso, resultando em uma imagem suja, crua, que contribui para dar ao filme um aspecto de triste realidade. Daí o diretor ainda segue a Nina pra lá e pra cá com a câmera na mão, buscando um estilo documental (muitas vezes a moça é filmada de costas enquanto caminha, em uma abordagem vitoriosa que Aronofsky já tinha utilizado naquele PRÊMIO NOBEL que é O Lutador) e utilizando planos longos, essenciais para o público compreender as coreografias do espetáculo de balé, por exemplo, ou acompanhar contemplativo enquanto a protagonista chora pitangas pelos cantos. E na mesma mesa VIP da direção e da fotografia senta uma direção de arte épica, espalhando espelhos como se não houvesse amanhã (que cansam de refletir os sentimentos de Nina, muitas vezes inclusive representando a personalidade partida da moçoila) e brincando bastante com a questão de cisne negro e cisne branco (não apenas Nina veste sempre branco como muitas das "adversidades" encontradas pela protagonista - Lily, o velho no metrô que representa sua culpa por ter se masturbado, sua própria mãe, entre outras - vestem preto. Da mesma forma, conforme uma determinada mudança vai entrando em curso, o figurino da protagonista vai incorporando o pretinho básico. E é interessante perceber que escritório e o apartamento de Thomas - que, por ser o diretor, por determinar o futuro daquelas meninas, é quem está acima do bem e do mal - possuem as cores preto e branco na mesma medida, de forma harmônica), além de ajudar a construir a personalidade reprimida da protagonista através do quarto dela, todo rosa e cheio de bichinhos de pelúcia (incluindo, entre eles, um cisne negro). Cisne Negro ainda conta com uma trilha inspirada, que, inicialmente minimalista, vai ganhando em grandiosidade e intensidade conforme a trajetória de Nina vai se realizando.
Trajetória, aliás, que Natalie Portman percorre com entrega total, em uma atuação épica e digna das maiores reverências (Oscar é pouco: Nati merece no mínimo um prêmio de melhor jogador da Copa do Mundo). Sempre com um tom de voz baixo, a atriz mantém uma postura contida, constantemente olhando para o chão, como se o seu comportamento sempre estivesse sendo julgado - e é através do olhar assustado e da respiração ofegante (em um trabalho supimpa do design de som) que percebemos como ela se sente deslocada e com medo ao dançar as coreografias do cisne negro. Além disso, Natalie consegue expressar emoções genuínas sem soar caricatural, deixando o espectador consternado e assustado com o caminho que Nina toma. E, para delírio geral, a atriz é acompanhada por um ótimo elenco: enquanto Mila Kunis soa extremamente natural e descontraída como Lily, Vincent Cassel encarna Thomas com vontade e paixão e Barbara Hershey consegue mostrar ao mesmo tempo sua preocupação e seu ressentimento com o sucesso da filha.
Visceral, inteligente e visualmente arrebatador, Cisne Negro é uma experiência perturbadora pela mente de alguém que, sob uma pressão absurda, tenta escapar de si mesma ao mesmo tempo em que não quer se desprender de seus valores. Um jogo de reflexos e espelhos tão repleto de significados que me sinto compelido a discutir alguns deles - algo que farei na segunda parte da crítica, abaixo, e que, por conter spoilers, deve ser lida só por quem já assistiu ao filme.
Parte 2: Michael Jackson estava errado
Quando Jackson cantou it doesn't matter if you're black or white ele certamente não estava pensando em Nina Sayers: destinada a ser um cisne branco por toda a sua vida, Nina vê sua personalidade partir ao meio com a pressão do papel principal e, aos poucos, vai deixando o cisne negro tomar o controle, o que acontece em uma cena visualmente tão bonita que ela poderia facilmente substituir alguma das tradicionais sete maravilhas do mundo.
Mas vamos do início. Totalmente infantil e reprimida, Nina gosta de ter a mãe sempre por perto, ficar sempre protegida. Entretanto, o papel de Rainha Cisne cobra dela um amadurecimento sexual e uma desenvoltura que ela ainda não possui - algo que é evidenciado pela chegada de Lily, que, por ter as características que faltam a Nina e pela semelhança física, acaba se tornando como uma contraparte da moça. À medida que o filme avança, Nina e Lily vão se aproximando aos poucos, enquanto ela vai se afastando da mãe (algo que é representado em uma cena linda onde, perto de três espelhos, cada uma fica refletida em um enquanto o do meio fica livre, evidenciando o espaço entre ambas. Os reflexos inclusive invertem a posição das duas, mostrando que a partir dali os papéis serão invertidos).
É então que, durante um jantar, Lily oferece uma blusa - preta - para Nina colocar. A moça vai ao banheiro e a veste por cima da blusa branca que estava usando. O simbolismo é bastante óbvio: pela primeira vez o cisne negro dentro de Nina sobrepujou o branco, e é logo após essa cena que ela sai pra dançar e se divertir, algo que não fazia antes (aliás, percebam que, entre os planos rápidos durante a festa, há um breve momento onde Nina surge com a mesma maquiagem que utilizará no espetáculo final ao interpretar o cisne negro). Quando volta pra casa com a Lily imaginária, Nina se enxerga em um espelho que é constituído de vários pequenos, como se sua imagem literalmente estivesse dividida; e depois, quando discute com a mãe, vemos a "Lily" caminhando pelos espelhos, pra mais tarde ser seguida pelo reflexo da protagonista, que se afastava mais de sua infância (e do cisne branco) e caminhava em direção à sua contraparte, o cisne negro. Dentro do quarto ela se entrega totalmente à paixão, algo essencial para a história não só porque vemos Mila Kunis e Natalie Portman se beijando (obrigado, Aronofsky), mas também porque a cena representa o momento onde Nina se apaixonou de vez por seu "lado negro".
A partir daí os reflexos de Nina no espelho tornam-se mais dissonantes, mostrando que sua personalidade está cada vez mais partida. É então que, no dia do espetáculo, Thomas diz a ela "a única pessoa no seu caminho é você mesma. É hora de se desprender dela". Após cair no palco justamente por ter ficado em seu próprio caminho (ela vê seu rosto em uma das dançarinas), Nina volta ao camarim e encontra a Lily imaginária. Entendendo que, como disse Thomas, precisava se livrar de si mesma, Nina ataca e mata seu alterego imaginário com um pedaço do espelho, assumindo novamente o controle de sua consciência. Esse ato de crueldade consigo mesma, eliminando de vez os vestígios de cisne branco da sua personalidade (como ela mesma dissera antes, a "garota doce" não existe mais), era o passo final na transformação de Nina em cisne negro - tanto é que, em suas derradeiras palavras , Nina sorri e diz "eu senti". Algo que, antes da transformação e mesmo passando quatro anos na companhia de dança, a frágil e tímida garota jamais havia feito. Marcadores: oscar 2011, Peliculosidade |