Em um mundo pós-apocalíptico, onde tudo é cinza, os sobreviventes são poucos, a comida está em falta e a conexão com a internet é sempre discada, um pai e um filho seguem por uma estrada em direção ao sul, carregando a esperança de encontrarem lá um lugar pelo menos habitável.
Após Onde os Fracos Não Têm Vez ANGARIAR o Oscar de melhor filme, Hollywood resolveu adaptar o mais novo livro de Cormac McCarthy, A Estrada, para as telonas. Uma história devastadora, melancólica, com poucos diálogos e ação, que tira sua genialidade da prosa CRUYFFIANA de McCarthy. Entretanto, o diretor John Hillcoat mandou a pressão às favas, cercou-se de uma equipe competente e fez o que devia ser feito.
Como muito ocorre em adaptações de livros, A Estrada possui uma narração em off - entretanto, ao invés de se apoiar no artifício como os gordos se apoiam no "light" que aparece ao lado de "Coca", a narração apenas pontua aqui e ali certos sentimentos do homem ("se o garoto não é a palavra de Deus, então Deus nunca falou"), ajudando a criar uma atmosfera de desolação tanto física quanto psicológica das personagens - da mesma forma, determinados diálogos, mesmo com poucas palavras, ilustram a selvageria daquela terra (como o homem falar "não é nada que não tenhamos visto antes", quando o garoto vê um cadáver). A trama foge de formulismos, acertadamente focando tudo na relação pai-filho. Embora existam acontecimentos tensos e marcantes, são os pequenos gestos, como o garoto fazendo questão de dividir a bebida com o pai, que mostram ao espectador quem aqueles dois realmente são.
Para acompanhar todo esse clima contemplativo, o diretor investe em planos longos, sem grandes MIRABOLÂNCIAS visuais, como alguém numa janela contando os carros que passam na rua. As elipses são ao mesmo tempo pertinentes e quase imperceptíveis, pois é justamente essa estranha coesão entre uma elipse súbita e seu plano anterior que confere um caráter de imensidão à jornada dos protagonistas. Soma-se a isso uma direção de arte que busca substituir a palavra "perfeição" no dicionário: a hegemonia do cinza sobre as outras cores é semelhante à do Lyon no campeonato francês, o que faz daquele mundo algo sem vida, devastado e permeado por uma desesperança que derrubaria até a mais efusiva das cheerleaders. Todas as estruturas estão em pedaços ou ruindo. Até mesmo os flashbacks, em sua maioria, são bastante escuros e cheios de sombra (com exceção de um ou outro, que possuem uma paleta de cores mais arco-íris staile e tal). A desolação que McCarthy torna tão palpável em palavras é fielmente representada pelo visual do filme.
Para fechar, embora com poucos nomes, o elenco se mostra afiado. Viggo Mortensen, como sempre, mergulha visceralmente na personagem, conseguindo demonstrar o amor do pai pelo filho através de pequenos olhares e gestos (e, o que é mais impressionante, faz isso através de uma barba que mais parece um MURO). Kodi Smith-McPhee não se acanha e bate de frente com seu veterano colega, transmitindo ternura e a inocência sem soar DISNEY. Charlize Theron fala pouco, mas fala bonito, com intensidade e um par de olhos que minha nossa senhora.
Como deixo bem claro nesta maravilhosa e extremamente bem escrita crítica, A Estrada não é uma película fácil. O filme tenta a todo custo arrancar e dilacerar a humanidade de seus protagonistas, a um ponto onde um pai apontar uma arma pra cabeça de seu filho é um gesto de amor. Até quando nossos princípios conseguem sobrepujar nossos instintos? E como ter vontade de sobreviver em um lugar onde não há sequer esperança? Uma narrativa tocante, complexa e questionadora, que vai acompanhar o espectador muito além da sala de cinema - impossível comer em um restaurante depois sem pensar no garoto e seu pai satisfazendo-se com insetos mortos. E isso é algo que só grandes filmes conseguem.