Um sanduíche tem um sabor diferenciado quando feito às duas da manhã. Acredito que seja pelo fato de destoar, de que sanduíches adornam cafés da manhã e almoços e jantas e lanches da tarde e refeições de última hora quando compromissos importantes estão batendo na porta, mas o frio e frequentemente alcoolizado véu da madrugada não é seu habitat natural (provavelmente por alguma questão envolvendo a quantidade de carboidratos nos ingredientes e a vontade que as pessoas têm de conseguir um abodmen trincado). Assim, entre os momentos em que o sol se deita e acorda de ressaca, as fortalezas de pão recheadas com queijo e gostos pessoais se tornam visitantes ocasionais, abrindo espaço para culinárias mais práticas como nuggets, comidas requentadas no microondas e miojos. Às duas da manhã, cortar uma fatia daquele queijo muito bom e impossível de cortar (lembrando sempre que a a qualidade do queijo e a facilidade de cortar fatias são inversamente proporcionais) é uma odisseia, e tais empecilhos tornam o sanduíche uma figura um tanto mítica durante a madrugada, uma aurora boreal culinária que surge frente às maravilhadas testemunhas para saciar sua fome de... bem, de fome mesmo.
Claro, os filisteus podem argumentar que o sanduiche das duas da madrugada é o mesmo das duas da tarde, que o pão contém a mesma quantidade de farinha e trigo, que o horário não influencia nos processos pelos quais os ingredientes passaram e que toda essa história é apenas impressão. Mas a realidade existe apenas da forma como a percebemos, e certamente o mesmo sanduíche vai ativar sinapses e funções diferentes no córtex cerebral se consumido de tarde ou de madrugada. A calma e a quietude da noite são preenchidas pelos sabores da refeição com mais intensidade. Há mais espaço para o sanduíche desdobrar suas expressões gustativas e olfativas, o mundo para por um momento para ver o que aquele intruso, aquele coadjuvante que normalmente surge como produto das circunstâncias - pouco tempo para comer uma refeição completa, um lanche para degustar assistindo a algum programa, uma alternativa comestível que abraça a praticidade -, pode realizar quando alçado à condição de protagonista sob a auspiciosa vigília da lua.
Lembram de Proust comendo o biscoito, não lembram? É a mesma ideia, mas, ao invés de resgatar sentimentos passados, o sanduíche das duas da manhã interage com a ausência dos elementos que costumeiramente vê ao seu redor, criando novas sensações. Ao invés de ativar a lembrança, cria a lembrança. E nos deixa ali, sentados, reflexivos, imaginando que há muito mais entre o céu e a Terra do que imagina nossa vã culinária. |