Acho que poucas coisas denotam com tanta força a preguiça da sociedade quanto o trânsito. Tipo, o trânsito é sempre ruim, e todo mundo sempre reclama, e todo mundo sempre faz algum gesto incisivo para reforçar seu argumento de que o governo ou as autoridades competentes ou algum aplicativo ou o destino ou outra pessoa devia consertar o trânsito, que segue tornando as ruas uma grande conexão discada e apontando o dedo para Robert Louis Stevenson e dizendo "você estava certo sobre aquele lance de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, cara!".
Falo isso porque, aqui em Porto Alegre, a situação se encontra em estado que só posso definir como tresloucado: motoristas brincam de quebra-cabeças com o posicionamento de seus veículos, ônibus passam tocando o terror no meio da galera, buzinas despejam ID pra tudo que é lado da algazarra. Deve ser até meio frustrante o cara ver todos aqueles comerciais de carro enaltecendo a liberdade apenas para comprar um e descobrir que a nossa liberdade só vai até onde começa a liberdade dos outros, nesse caso representada por um para-choque quinze centímetros à frente. E o pior é que a bunda dos carros sempre parece um rosto feliz, o que torna tudo ainda mais agoniante porque dá a impressão de que aquele amontoado de engrenagens e metal está tirando sarro de você.
O pior é que não há perspectiva de mudança. É como se tivéssemos sido vencidos pelos automóveis e fossemos obrigados a viver nessa ditadura de eterno estresse, sem nenhum Robespierre da vida chegar gritando "Liberté! Egalité! Formas alternativas de locomoção no espaço público!". E olha que os elementos que compõem a atual conjuntura automobilística na cidade (todos eles relacionados a expressões como "raiva", "frustração" e "bater a cabeça no volante") são bem parecidos com aqueles que dão início a uma revolução. Mas parece que o ditado se corrobora e nós, os criadores, estamos fadados a viver presos dentro de nossas criaturas, quer o sinal esteja fechado ou aberto.
Dentro desse contexto, o ar-condicionado é o ópio do povo.